quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Braga - Novo Conto de João N Dias

Técnicas

No estúdio de rádio, o jovem locutor tinha o seu comentário preparado. O locutor mais velho, já com muitos anos de trabalho, conduzia a emissão da tarde. Quando reparou no monte de papéis que o jovem trazia, resolveu colocá-lo à prova: lançou-o na emissão, levantou-se, tirou-lhe as folhas e saiu do estúdio. O jovem, estranhou o gesto, mas a rádio tem a particularidade de colocar os profissionais com as prioridades bem definidas. A emissão tinha que prosseguir. O jovem falou, falou, falou e quando se preparava para terminar, o locutor voltou ao estúdio e retomou a condução da emissão. No final daquela estranha experiência, o jovem reparou que não sentira falta das folhas.
             
Muitos anos mais tarde, o jovem locutor tinha um espaço de comentário num programa de televisão. À sua frente tinha um reconhecido profissional, que utilizava todo o tipo de tecnologias para fazer o seu trabalho. Expunha ideias e esquemas, em alguns casos tão complexos que pareciam as bases de uma qualquer cadeira, numa universidade. O jovem, esse, levava as ideias claras e as palavras prontas, para o estúdio. Caneta e papel apenas para uns simples tópicos.
            
Um dia, o avançadíssimo aparelho que o profissional usava para fazer o seu comentário falhou em directo. O profissional começou a perder a fluência do discurso, começou a emperrar, como se ele próprio fosse um aparelho avariado. O jovem, apercebendo-se do problema técnico, usou da palavra para prosseguir com o espaço. Em televisão e em rádio, o tempo é tudo. Mais uma vez, as prioridades: a emissão tem de prosseguir.

No final da emissão, o profissional estava revoltado, pelo facto de ter tido um problema técnico, que lhe dificultara o trabalho. E estava tão revoltado, que não se dignou a agradecer a ajuda dada em directo. O jovem continuou o seu caminho, sorrindo por estar na presença de uma dependência estranha. Tinha perante si um caso de extraordinária aparência, mas escasso conteúdo.
            
Na semana seguinte, o aparelho não estava em emissão. Estava o profissional, mas sem o mesmo brilho. Parecia nunca ter feito aquele trabalho. O jovem continuava tranquilo e, mais uma vez, teve que segurar a emissão. Em poucas semanas, o profissional deixou também de estar em emissão. Estava apenas o jovem, com caneta e papel. Um dia quiseram oferecer-lhe um aparelho daqueles. Sorriu e perguntou:
             
- Isso fala?

Mais aqui.

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