Excelência,
Não me conhece, mas eu conheço-o e, por isso, espero que não se importe que
lhe dê alguns dados biográficos. Chamo-me Pedro Miguel, tenho 22 anos, sou
um recém-licenciado da Escola Superior de Enfermagem do Porto. Nasci no dia
31 de Julho de 1990 na freguesia de Miragaia. Cresci em Alijó com os meus
avós paternos, brinquei na rua e frequentava a creche da Vila. Outras vezes
acompanhava a minha avó e o meu avô quando estes iam trabalhar para o
Meiral, um terreno de árvores de fruto, vinha (como a maioria daquela
zona), entre outros. Aprendi a dizer “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”
quando me cruzava na rua com terceiros. Aprendi que a vida se conquista com
trabalho e dedicação. Aprendi, ou melhor dizendo, ficou em mim a génesis da
ideia de que o valor de um homem reside no poder e força das suas
convicções, no trato que dá aos seus iguais, no respeito pelo que o rodeia.
Voltei para a cidade onde continuei o meu percurso: andei numa creche em
Aldoar, freguesia do Porto e no Patronato de Santa Teresinha; frequentei a
escola João de Deus durante os primeiros 4 anos de escolaridade, o Grande
Colégio Universal até ao 10º ano e a Escola Secundária João Gonçalves Zarco
nos dois anos de ensino secundário que restam. Em 2008 candidatei-me e fui
aceite na Escola Superior de Enfermagem do Porto, como referi, tendo
terminado o meu curso em 2012 com a classificação de Bom. Nunca reprovei
nenhum ano. No ensino superior conclui todas as unidades curriculares sem
“deixar nenhuma cadeira para trás” como se costuma dizer.
Durante estes 20 anos em que vivi no Grande Porto, cresci em tamanho, em
sabedoria e em graça. Fui educado por uma freira, a irmã Celeste, da qual
ainda me recordo de a ver tirar o véu e ficar surpreendido por ela ter
cabelo; tive professores que me ensinaram a ver o mundo (nem todos bons,
mas alguns dignos de serem apelidados de Professores, assim mesmo com P
maiúsculo); tive catequistas que, mais do que religião, me ensinaram muito
sobre amizade, amor, convivência, sobre a vida no geral; tive a minha
família que me acompanhou e me fez; tive amigos que partilharam muito,
alguns segredos, algumas loucuras próprias dos anos em flor; tive Praxe,
aquilo que tanta polémica dá, não tendo uma única queixa da mesma,
discutindo Praxe várias vezes com diversos professores e outras pessoas, e
posso afirmar ter sido ela que me fez crescer muito, perceber muita coisa
diferente, conviver com outras realidades, ter tirado da minha boca para
poder oferecer um lanche a um colega que não tinha que comer nesse dia.
Tudo isto me engrandeceu o espírito. E cresci, tornei-me um cidadão que,
não sendo perfeito, luto pelas coisas em que eu acredito, persigo objetivos
e almejo, como todos os demais, a felicidade, a presença de um propósito em
existirmos. Sou exigente comigo mesmo, em ser cada vez melhor, em ter um
lugar no mundo, poder dizer “eu existo, eu marquei o mundo com os meus
atos”.
Pergunta agora o senhor por que razão estarei eu a contar-lhe isto. Eu
respondo-lhe: quero despedir-me de si. Em menos de 48 horas estarei a
embarcar para o Reino Unido numa viagem só de ida. É curioso, creio eu,
porque a minha família (inclusive o meu pai) foi emigrante em França (onde
ainda conservo parte da minha família) e agora também eu o sou. Os motivos
são outros, claro, mas o objetivo é mesmo: trabalhar, ter dinheiro, ter um
futuro. Lamento não poder dar ao meu país o que ele me deu. Junto comigo
levo mais 24 pessoas de vários pontos do país, de várias escolas de
Enfermagem. Somos dos melhores do mundo, sabia? E não somos reconhecidos,
não somos contratados, não somos respeitados. O respeito foi uma das
palavras que mais habituado cresci a ouvir. A par dessa também a
responsabilidade pelos meus atos, o assumir da consequência, boa ou má (não
me considero, volto a dizer, perfeito).
Esse assumir de uma consequência, a pro-atividade para fazer mais, o
pensar, ter uma perspetiva sobre as coisas, é algo que falta em Portugal.
Considero ridículas estas últimas semanas. Não entendo as manifestações que
se fazem que não sejam pacíficas. Não sou a favor das multidões em protesto
com caras tapadas (se estão lá, deem a cara pelo que lutam), daqueles que
batem em polícias e afins. Mais, a culpa do país estar como está não é sua,
nem dos sucessivos governos rosas e laranjas com um azul à mistura: a culpa
é de todos. Porquê? Porque vivemos com uma Assembleia que pretende ser
representativa, existindo, por isso, eleições. A culpa é nossa que vos
pusemos nesse pódio onde não merecem estar. Contudo o povo cansou-se da
ausência de alternativas, da austeridade, do desemprego, das taxas, dos
impostos. E pedem um novo Abril. Para quê? O Abril somos nós, a liberdade é
nossa. E é essa liberdade que nos permite sair à rua, que me permite
escrever estas linhas. O que nós precisamos é que se recorde que Abril
existiu para ser o povo quem “mais ordena”. E a precisarmos de algo,
precisamos que nos seja relembrado as nossas funções, os nossos direitos,
mas, sobretudo, principalmente, com muita ênfase, os nossos deveres.
Porém, irei partir. Dia 18 de Outubro levarei um cachecol de Portugal ao
pescoço e uma bandeira na bagagem de mão. Levarei a Pátria para outra
Pátria, levarei a excelência do que todas as pessoas me deram para outro
país. Mostrarei o que sou, conquistarei mais. Mas não me esquecerei nunca
do que deixei cá. Nunca. Deixo amigos, deixo a minha família. Como posso
explicar à minha sobrinha que tem um ano que eu a amo, mas que não posso
estar junto dela? Como posso justificar a minha ausência? Como posso dizer
adeus aos meus avós, aos meus tios, ao meu pai? Eles criaram, fizeram-me um
Homem. Sou sem dúvida um privilegiado. Ainda consigo ter dinheiro para
emigrar, o que não é para todos. Sou educado, tenho objetivos, tenho
valores. Sou um privilegiado.
E é por isso que lhe faço um último pedido. Por favor, não crie um imposto
sobre as lágrimas e muito menos sobre a saudade. Permita-me chorar, odiar
este país por minutos que sejam, por não me permitir viver no meu país,
trabalhar no meu país, envelhecer no meu país. Permita-me sentir falta do
cheiro a mar, do sol, da comida, dos campos da minha aldeia. Permita-me,
sim? E verá que nos meus olhos haverá saudade e a esperança de um dia aqui
voltar, voltar à minha terra. Voltarei com mágoa, mas sem ressentimentos,
ao país que, lá bem no fundo, me expulsou dele mesmo.
Não pretendo que me responda, sinceramente. Sei que ser político obriga a
ser politicamente correto, que me desejará boa sorte, felicidades. Prefiro
ouvir isso de quem o diz com uma lágrima no coração, com o desejo ardente
de que de facto essa sorte exista no meu caminho.
Cumprimentos,
Pedro Marques
Enviada hoje para a Presidência da República.
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